quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Capitão - Por José Soares de Melo




Por José Soares de Melo

Uma das figuras mais conhecidas da Custódia de décadas atrás, entre as muitas existentes, tinha um quê de interessante: Ninguém sabia seu verdadeiro nome. Para todos, era apenas Capitão. Quando algum curioso perguntava seu nome e sua origem, de onde era, etc., ele desconversava e nada esclarecia. Sua vida era uma rotina altamente cansativa: todos os dias, descia a Serra do Sabá, com sua tropa de jumentos, encangalhados e cada um com  três ancoretas de água mineral da fonte de Sabá, para vender nas casas dos mais “ricos”. Percorria invariavelmente o mesmo roteiro, batendo sempre as mesmas portas, fazendo a entrega até o meio dia, quando então em pleno sol escaldante fazia o caminho inverso e mais difícil: a subida dos  doze quilômetros que separam a Fonte de Sabá da cidade. Capitão espelhava o autêntico sertanejo rude, mas educado, miserável, mas lutador, que jamais fraqueja ente as dificuldades da vida. 

Sua aparência lembrava um pouco os cangaceiros do sertão: baixo, forte, troncudo, cabelos e barbas longas, com seu indefectível cigarro de fumo de corda sempre aceso e o velho chapéu de couro sendo retirado da cabeça, num sinal de respeito, sempre que se dirigia à alguém. Suas vestes eram compatíveis com a rudeza da vida que levava: calças e camisas de  cáqui, tecido grosso,  alpercatas de rabicho, com solado de pneu de caminhão, um albornal onde acomodava seus apetrechos indispensáveis à sua vida. Ali ele carregava o rolo de fumo, o pacote de palhas de milho (para enrolar os cigarros de fumo), o quicé para picar o fumo, e o “currimbó” ou “fogueteiro”.

Convém fazer uma pausa para explicar o que era o “fogueteiro”. Consistia em um pedaço do chifre de boi, cortado e alisado manualmente, cheio de fibra de algodão, guarnecido por uma tampa feita de um pedaço de cuia, e nele amarrado uma pequena haste de ferro. O prazer do viciado em fumo era precedido de um verdadeiro ritual: primeiro preparava a palha de milho, cortando-a e alisando-a com as costas do quicé, depois prendia-se a mesma entre os lábios, enquanto picava vagarosamente o fumo, que após ser desfiado, era enrolado na palha de milho. A seguir, parte do ritual que requeria perícia: acender o “currimbó”. O usuário abria o “currimbó”, colocava ele na palma de sua mão, fechando-o entre os dedos, e acomodava uma pedra de fogo (geralmente um pedaço de rocha preta e dura) nos dedos polegar e indicador. Com a outra mão segurando a pequena haste de ferro, cujo nome era fuzil, era desferido um golpe forte, resvalando da pedra. O atrito provocava centelhas de fogo que caiam sobre o algodão, e com poucos sopros estava aceso o maior isqueiro do mundo. Para apagar, bastava fechar o “currimbó” vez que ausência do ar apagava o fogo preservando o algodão para outras ocasiões.
  
Capitão viveu durante muitos anos nessa rotina, sem jamais faltar um dia sequer, sempre abastecendo seus clientes com a cristalina água de Sabá. Quando Capitão apontava na Rua, a molecada corria atrás dele, sempre fazendo a invariável pergunta:

- Capitão, cadê a guerra?

Ao que ele paciente e invariavelmente sempre respondia, apontando pra ao céu e para o chão:

-          Tá no ar e ta na terra!

Sei que deixou marcado na memória de centenas de crianças, o seu jeito bonachão e paciente de ser, o mistério sobre a sua vida de ermitão lá nas brenhas do Sabá, e principalmente, a lembrança do desfilar de sua tropa de jumentos pelas ruas da cidade, com o chocalho badalando, avisando da chegada do Capitão.                

4 comentários:

Jorge Remígio disse...

Bem interessante o seu texto Zé Melo. É gratificante ver resgatada à memória, personalidades da história de nossa cidade, como você fez e muito bem, a respeito da figura enigmática do CAPITÃO. Lembro dele abastecendo os potes de barro de minha casa na Rua Manoel Borba no ano de 1960. Abraço

Anonymous disse...

Obrigado, Jorge, e por outro lado vai aí uma cobrança: é preciso vc. postar mais alguns textos tão bem feito que vc. sempre faz, para que possamos voltar no tempo, a exemplo daquele sobre o cinema, entre tantos e tão bons textos que vc. escreve. Aguardo ansioso.
Um abraço
J.Melo

Anonymous disse...

Ze Melo.
Sobre a figura impar de "Capitão", lembro que ele calçava as alpercatas apenas nos dias de feira.
Durante o resto da semana o trajeto Sabá x Custódia e vice versa, era feito com os pés descalços.No retorno ao Sabá, ele sempre parava no Banheiro Municipal.Ali na Várzea alguma família lhe dava o almoço.
Os pés de "Capitão" tinham rachaduras medonhas, porem indolores.Viraram cascos.
Curiosidade: Os dois jumentos de "Capitão" desciam sós a Serra do Sabá e paravam exatamente na casa do primeiro fregues.Pacientemente esperavam pelo seu dono onde seria feita a primeira entrega.No retorno, enquanto "Capitão" almoçava os jumentos, também sosinhos subiam a Serra do Sabá.
Continuo acreditando que um dia teremos o nosso museu municipal.
Cidade sem história é cidade sem alma.
Fernando Florêncio
Ilhéus/Ba

Anonymous disse...

Lembrei-me.
Quem dava o almoço a "Capitão" era Dona Isaque Lopes.Dona Brasilina também.
Enquanto "Capitão" descansava do almoço, na sombra da varanda da casa de Da.Isaque, os jumentos adiantavam a viagem de volta.
Fernando Florêncio
Ilhéus/Ba

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