Por José Melo, com adendos
de Vanise e Laíse Rezende
Seu Né foi uma figura ímpar na história da Custódia de ontem, que participou efetivamente do seu desenvolvimento, nos primeiros sessenta anos do século XX. Nasceu em 15/09/1902, na Fazenda Tamboril, hoje integrada à área urbana do município, filho de Serapião Domingues de Rezende e Izaura Marinho (dona Dondom), que posteriormente residiram na cidade.
De altura mediana, voz nasalada e postura elegante – jamais o vi sem o terno completo. Assumiu o tabelionato de Custódia substituindo o seu pai, que foi o primeiro tabelião da cidade. Era ainda jovem quando lhe foi outorgado esse importante cargo, tornando-se uma figura das mais respeitadas da sociedade custodiense de sua época. Sua esposa, dona Ester – da família Pires Ferreira de Tabira - era uma mulher simpática e inteligente, mãe de sete filhos, que sabia receber muito bem as autoridades e importantes correligionários políticos de Seu Né, em sua casa, situada ao lado direito da Igreja Matriz de São José. A inesquecível Tia Dona, irmã solteira de Seu Né, morava na mesma rua com sua mãe viúva, dona Dondom. Hoje, a antiga Rua Padre Leão, onde as duas famílias residiam, é chamada Rua Maria Marinho de Rezende, em homenagem a Tia Dona. Lembro-me que aos domingos ela saía apressada, com a fita da Irmandade de Maria e uma pequena Bíblia, para assistir à missa ou ensinar o catecismo que preparava as crianças para as cerimônias do crisma ou da primeira comunhão. Durante a semana, ensinava a um grupo de crianças, em um antigo prédio da paróquia, o mesmo em que, semanalmente, funcionava o cinema.
O cartório de Seu Né ficava junto ao Bar Fênix, apenas separado por um longo corredor que dava acesso ao bar. O fórum funcionava na esquina da antiga Rua Padre Leão com a Av. Siqueira Campos (hoje Av. João Veríssimo), no mesmo local em que funciona, atualmente, a Biblioteca Pública Municipal Professora Zenilda Simões de Oliveira Burgos. Assisti a vários júris ali realizados. Adorava ouvir os discursos inflamados dos advogados e promotores. Seu Né era o escrivão.
Figura muito respeitada ele era admirado por todos, especialmente pelos proprietários de terra. sítios e fazendas do município. Os mais pobres, que recebiam sempre sua atenção e orientação para resolverem problemas de terra, registros ou compra e venda de casas, costumavam trazer à sua residência, nos dias da feira, legumes e frutas, feijão verde, queijo de coalho, ovos e galinhas, para agradecer o que recebiam como um grande favor do escrivão. Ao mesmo tempo, era ele quem acolhia e orientava, com a sua longa experiência, os jovens e iniciantes promotores e juízes que atendiam na comarca.
Na época eu era uma criança chegada há pouco tempo da zona rural. Causava-me admiração ver aquele senhor de modos fidalgos, gentil com todos e diferente da maioria dos homens da cidade - apenas ele e Seu Ernesto, político da época que foi prefeito da cidade, trajavam invariavelmente da mesma forma: passeio completo, como se dizia, o que significava que estavam sempre de paletó e gravata.
Entre o cartório de seu Né e o cinema, ficava o Bar Fênix, que era o ponto chic da sociedade da época, quando Custódia não dispunha de nenhuma casa de diversão ou Clube - e que pertencera também a seu Né, anos atrás. Parece-me ver, lá atrás, o balcão, algumas mesas e a velha geladeira movida a querosene. Mais à frente as mesas de sinuca muito disputadas pelos jovens. Uma vez por semana – sempre na segunda-feira - funcionava um verdadeiro cassino: roletas, mesas de baralho, “esplandim”, “maior ponto”, praticamente todo tipo de jogo. Nesse dia a frequência era restrita ao povão. Já da terça-feira ao domingo, o bar era o point da sociedade custodiense de então.
Entre um expediente e outro, o Bar Fênix recebia grande número de pessoas que, aproveitando o intervalo do almoço, iam saborear um aperitivo. Encontravam-se ali o coletor estadual, o agente do IBGE, o prefeito, o escrivão , enfim, a nata da sociedade frequentava aquele espaço.
Recordo com imagens muito nítidas quando observava seu Né sentado à mesa do Bar Fênix, absorto em pensamentos, com uma cerveja que durava uma eternidade. Ao chegar, sentava, pedia a cerveja, enchia o copo calmamente e a cada gole limpava os lábios com o seu lenço impecavelmente branco. Gostava de ver quando ele tirava o seu pente e fazia gestos de pentear a cabeleira quase inexistente. Vi por vezes ele abrir a carteira para dar dinheiro a populares que o procuravam. Depois que pagava a conta, levantava-se calmamente e se dirigia a sua residência que ficava do outro lado da igreja, em frente ao Bar Fênix. Dali só retornava à tarde para o cartório.
Quando Seu Né decidiu se aposentar e vender o cartório, sua família foi residir em Recife, mas ele ainda ficou algum tempo na cidade, trabalhando como “rábula” para defender, no fórum, pessoas que geralmente não podiam pagar a um advogado.
Uma característica marcante de seu Né era a caligrafia. Ainda hoje, décadas depois de tê-la conhecido e admirado, sou plenamente capaz de reconhecer a letra de seu Né, por ser bastante original - nunca vi nenhuma outra parecida. Sua assinatura - Manoel Marinho de Rezende - era inclinada para a direita, uma marca da sua personalidade, e ainda hoje seria vista como uma assinatura original.
Recordo que nos finais de semana formavam-se várias mesas, com praticamente toda a sociedade representada no Bar Fênix. Recordo pessoas como Seu Né, Chico Eugênio, Zé de França e outras. Entre causos e piadas, a conversa rolava solta.
Naqueles tempos o jogo do bicho era permitido e Seu Né possuía a Banca Confiança, depois repassada para Duquinha - e que funciona até hoje. Para ganhar uns trocados fui cambista da Banca Confiança, na época passando jogo de casa em casa, nos bares e em outros pontos da cidade. Antes das quinze horas ia fazer a prestação de contas e por vezes quem estava conferindo as apostas e recebendo os talões era Beto, filho mais novo de Seu Né, hoje o engenheiro e empresário Herbert Rezende. Nas férias do colégio ele ajudava na banca instalada em uma casa próxima ao cartório, a qual algum tempo depois foi a residência de meus pais.
Anos depois, quando exercia o cargo de Secretário da Prefeitura, sugeri ao então Prefeito Luizito, que na época estava construindo o novo fórum da cidade, que fizesse uma homenagem a Seu Né, designando aquelas instalações com seu nome. Apesar da tentativa de Luizito, o Tribunal de Justiça não atendeu a solicitação, justificando que o fórum seria designado com o nome de um juiz, que tinha trabalhado recentemente em Custódia e havia falecido. Assim, o fórum foi designado “Fórum Dr. Josué Custódio de Albuquerque”, morto em decorrência de acidente de trânsito na capital pernambucana.
Enquanto residiu em Recife, com a família, Seu Né jamais deixou de se interessar vivamente por tudo o que acontecia em Custódia. Em 2002, já à proximidade da morte alguns meses antes de completar cem anos, seu médico, na intenção de alegrá-lo, contava-lhe sempre que havia passado por Custódia, que lá tinha chovido e a política ia muito bem.
Por tudo que representou para a Custódia daqueles tempos, Seu Né merece o reconhecimento de todos - e aqui fica a sugestão aos nossos representantes no Legislativo Municipal: que se faça justiça, mesmo que tardia, a quem tanto contribuiu com a Justiça em nossa cidade – e que seja designado um logradouro ou uma edificação pública com o nome desse custodiense honrado e batalhador, cujos descendentes hoje, apesar de ausentes da terra, demonstram carinho pelo berço que os acolheu.