quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Adão & Eva


E não foi que naquela localidade sem telefone, sem sinal de televisão, onde sequer existia uma simples banca de revistas, que alguém resolveu ir de encontro a moral e aos bons costumes? Isso aconteceu lá pela metade dos anos setenta, quando a ditadura existia, mas em Iracema, dela ninguém sabia notícias.

Por certo, não seria a primeira vez que os ¨valores¨ seriam postos a prova. Meses atrás, a musa da cidade fora indicada como postulante ao concurso de miss estadual. Até aí tudo bem, afinal, todo interior que se preze busca essa glória. O sonho foi logo desfeito quando Gerusa, a guardiã da moral e da honra, vociferou: ¨Êpa! Ela não é virgem!¨ E o pior, ainda verbalizou o deflorante. 

E não é que o cão insistia em cutucar os habitantes do lugar naqueles dias? Estes, acostumados com os filmes: ¨Coração de luto,¨ ¨O ébrio,¨ e ¨Dio como te amo,¨ estranharam o título do filme estampado no cartaz: Adão & Eva. E ali na praça, pensativos, abusavam da imaginação. Até Gerusa, moça velha e abandonada no altar, de cara emburrada, mantia-se quieta. Porém, por ser irmã do prefeito, haveria de quebrar o silêncio: ¨Isso é coisa do capeta?¨ Do outro lado, Alzira, viúva e metida a cantora de igreja, não tinha a intenção de silenciar: ¨Coisa de Deus não é... na bíblia não fala de um casal nu dentro de uma maçã!¨ Já com ar de superioridade, Gertrudes, moça estudada e acostumada até a andar na escada rolante da Viana Leal, no Recife, arremata: ¨É não, mulher! Trata-se de uma montagem de retratos!¨ Quanto aos meninos, rapazes e homens presentes, evidentemente, davam asas a imaginação.

Seu Djalma, o dono do cinema, sabendo aonde aquela conversa podia chegar, tratou de defender seu investimento: ¨Vocês, avisem por aí que só entra no cinema quem tiver mais de 18 anos.¨ Aproveitou a atenção: ¨Completos! Nem um dia a menos, entenderam?¨ Tentando amenizar o conteúdo do cartaz, diz: ¨Além do mais, no cartaz, as moças presentes podem ver, isso aqui é só um pedaço de barriga, a mão da artista encobre seus peitos.¨ Nessa hora, houve uma entonação, num só grito: ¨Os peitos?¨

Tudo ia bem. Nunca se viu tanta gente na frente do cinema de Iracema, interior pernambucano. Lá estava Seu Porfírio de 88 anos de idade a contar com que pernas chegou até ali. Ao seu lado, Seu Praxedes, que segundo as más línguas, era de muita gentileza no ofertar de doces às crianças nos fundos da sua loja. Enfim, tudo era festa! Seu Manoel, conhecido por entender o linguajar de galinhas, não se continha pelas vendas de refresco e de ¨bolo de bacia.¨ Só não falei de Dema, o doido do lugar, porém este gritou: ¨Alguém vai ser preso!¨ E neste momento a veraneio da Polícia esbarrou na porta do cinema. Silêncio total! Até Seu Djalma veio à porta com ingressos a mão. O delegado desce do carro usando botas longas, de paletó, palito no canto da boca e, fica em silêncio. Alguns segundos se passaram até que o delegado olha pros lados, ajeita sua calça com suspensórios e finalmente bravejou: ¨O filme está preso!¨

E, em meio a um corredor polonês o filme, sem algemas, foi conduzido à traseira da veraneio da Polícia local. No silêncio da noite, só uma voz se escutou, a de Seu Porfírio: ¨Isso sim, é uma pouca vergonha!¨ Mas a história não acaba aí. Seu Djalma, um velho policial aposentado e acostumado com situações contraditórias nunca foi de fugir da raia. Na pior das hipóteses, haveria de libertar o filme, pois na segunda-feira teria de devolver à capital.

Seu Djalma apela para o vigário da paróquia, um velho frequentador de filmes de bang-bang. Entre um carteado e outro, o pároco diz: ¨Não vejo nada demais, porém estou de mãos atadas diante de Deus!¨ Logo ele! Acostumado a receitar e apalpar intimidades de moças e senhoras em suas consultas médicas. Seu Djalma saiu da casa paroquial sem saber a quem recorrer. Ainda viu luzes na prefeitura acesa, mas não se atreveu a incomodar o adversário político da última eleição. O juiz, Seu Edmundo, nem pensar, passaria a noite na cela junto ao filme. Na aflição da noite, um pensamento futucou sua cabeça: Felisbão, o irmão caçula e de cabeça arejada do delegado.

Enfim, o filme foi liberado! Porém com uma condição: Só para homens! Não qualquer homem, aqueles de idade superior a 21 anos. No dia seguinte, o cartaz foi afixado no costumeiro pé de algaroba com um aviso escrito na cartolina branca: ¨Somentes para homens desacompanhados. ¨ A esta altura, a macharada tomara conhecimento do sucedido e só falavam no filme. Seu Djalma, que nunca foi tolo, só pensava nos lucros: ¨Vai ter matinê no sábado e no domingo.¨

E não é que o enterro voltou? As beatas perderam a batalha mas almejavam a guerra. Quem ia passar o filme? Afinal, o único projecionista tinha apenas quinze anos de idade. E, novamente, a pendenga estava de volta. ¨Isso é uma chamengação¨, disse na cadeira de balanço Seu Porfírio. E desta vez, a veraneio da polícia passou à tarde na porta da residência de Seu Djalma. Conta-se que Dona Firmina, esposa do dono do cinema, ¨passou¨ umas três garrafas de café enquanto o delegado, o vigário, Felisbão e uma meia dúzia de beatas se digladiavam.

E assim amigos, por ser o único habitante da cidade que sabia manusear um projetor de cinema, projetei na tela panorâmica Adão e Eva, sete ou oito vezes, não lembro bem. Dizem que, até hoje Dr. Felisbão receita gratuitamente cumprindo rigores daquela reunião na casa de Seu Djalma. Afinal, a brilhante idéia de projetar o filme sem olhar a tela, foi dele. 

E só pra finalizar, no filme não havia sexo explícito, sequer se percebia os órgãos genitais do casal que insistia em deixar as suas alianças à mostra. Tratava-se de um documentário de produção alemã, cujo objetivo era instruir da diversidade de posições em um coito sexual. Também é fato que projetei e assisti o filme em todas as suas exibições em Iracema. O delegado, na certa estava entertido no carteado com o vigário naquelas noites. Aqui acolá, ainda arranjava tempo e da janelinha da cabine tirava sarro dos meus amigos, eles na calçada esperando que alguém lhe contasse o filme no sair do cinema.


Autor: Carlos Lopes - Olinda/PE
Blog: Os Gândavos

1 comentários:

Anonymous disse...

Se a união em casamento de pessoas do mesmo sexo (homem com homem e mulher com mulher)fosse abençoada por Deus, ele não teria criado Adão e Eva.
Teria criado ADÃO E IVO.
Fernando Florencio
Ilheus/Ba

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