sábado, 17 de dezembro de 2011

O cinema de seu Zé das Máquinas


Por Carlos Lopes


Depois de mais de duas horas chacoalhando dentro de uma boléia de camionete imprópria à cinco pessoas, a velha e fiel Ford 1951 aponta em direção ao centro de Custódia. Pouco havia de expectativa, muito mais de cansaço e desgosto por deixar para trás a cidade de nascimento. De todos, somente eu e o meu pai de nada tinha a reclamar. Ele por ter perdido o que conseguira em anos de trabalho e no meu caso apenas uma criança de nove anos aberto as mudanças da vida. Arregalei bem os olhos para admirar uma velha fubica ano 1929 estacionada na calçada da avenida Manoel Borba. Mais tarde vim a saber pertencer a João Correia.

A primeira casa em que moramos em Custódia foi na rua Coronel Nemésio Rodrigues de Melo. Nossos vizinhos eram os irmãos Vitor. Fernando constrói um carrinho de madeira para mim e estabeleceu-se uma grande amizade entre todos. A casa deles era muito freqüentada e quase sempre se via por lá Marcos e Márcio Moura, que juntamente com seus pais foram de grande importância na nossa chegada já que os conhecia de Tabira, onde tenente Ulisses fora delegado. Logo percebemos que nossa nova casa tinha fundos com o cinema e em dias de exibição dava pra ouvir com nitidez a trilha sonora dos filmes.

Seu Benedito, um senhor aposentado do exército, sentia muito gosto em se pompar usando farda de gala na entrada do seu cinema. Durante o dia atuava como ¨juiz de menor¨ perambulando atrás da criançada. Era um Deus nos acuda quando o velho aparecia com seu tradicional: ¨Espere aí¨. Normalmente findava com nossas brincadeiras de rua, mas em compensação de longe gritávamos: ¨Papagaio Verde!¨ No mesmo prédio do cinema de Seu Benedito surge o Cine Uirapuru, de propriedade de Seu Adolfo, provindo das bandas de Quitimbú. Aliás, a história da cenegrafia custodiense ainda contou com a participação de Zé de Isaias e Adamastor Ferraz, os pioneiros em produzir exibições cinematográficas que se tem conhecimento. Contam que Adamastor certa vez em São Caetano, cobrou a ¨entrada¨ pelo mesmo filme três vezes. Vendo cada rolo de filme terminar e a debandada dos nativos, anunciava novamente o filme e fazia um novo apurado.

Meu pai comprou o cinema de Seu Adolfo por uma quantia bastante razoável ficando um saldo a ser liquidado em pequenas parcelas, sob a alegação de que teria de assim ser feito antes de alguma desavença com algum pai de família. O cinema trouxe ao meu pai a notoriedade que hoje o torna conhecido por várias gerações de pessoas e é impossível quem não o reconheça pelo nome de Seu Zé do Cinema ou Seu Zé das Máquinas. O novo cinema veio a ser registrado oficialmente como Cine Santa Maria, porém foi com o nome Cine Custódia que ficou conhecido. O cinema funcionava na Avenida Inocêncio Lima em um salão de propriedade de um dos seus melhores amigos, o Sr. Guilherme Queiroz. Ele, fiscal de renda do Estado e filho de Nozinho Veríssimo, uma verdadeira lenda do município e também pai de Terezinha Queiroz, a nossa vizinha de frente, isso já na rua Dr. Fraga Rocha.

Como meu pai ¨exibia¨ filmes em outras cidades foi percebendo as inovações e procurava atualizar seu cinema. Daí vieram: piso em declineo, cadeiras apropriadas, ventiladores de teto, tela panorâmica e por fim, aquisição de projetor de 35mm, equipamento pouco comum à maioria dos cinemas da região. Coube ao meu pai exibir o primeiro filme colorido na cidade. E aí tem uma curiosidade. O filme fora produzido em cinemascop e cadê a lente especial? Tentou-se de tudo, inclusive transmitir imagem de espelho para espelho, mas não deu certo. Ninguém reclamou pela imagem comprimida, afinal tratava-se de um filme colorido. Foram infindáveis os títulos exibidos no Cine Custódia, destacando-se: Os canhões de Navarone, Meu ódio será sua herança, A meia-noite levarei tua alma, Os três mosqueteiros, Coração de Luto, Romeu e Julieta, Love story, A mulher do padre, Tarzan e as Amazonas e Teixeirinha e as sete provas. Este último, certa vez Fernando José o batizou de Teixeirinha e as 32 provas. Isto porque sempre que o faturamento caia meu pai o trazia de volta.

Enfim, o Cine Custódia funcionou durante quase uma década como um dos principais pontos de cultura e entretenimento de Custódia. Lá, além de assistir o Repórter Esso, ainda se assistia o filme: ¨A Copa do Mundo de 70¨. Filmes como este, juntamente com ¨O assalto ao trem pagador¨ e ¨Mineirinho vivo ou morto¨, traziam ao cinema até o vigário logal. Quantos namoros não tiveram início durante as sessões? Existia lugar melhor pra uns amassos naquele tempo? Mas nem sempre de glória vivia o cinema. A existência de um único público às vezes levava meu pai a loucura. Quando se instalava na cidade um parque de diversão ou um circo, ocasiões onde nem sempre se conseguia público mínimo que custeasse a exibição, meu pai ia ao desespero. Era hora de procurar outras ¨praças¨ para não deixar faltar comida à mesa. E isso meu pai fez muito bem protagonizando exibições em lugarejos onde nunca havia chegado a sétima arte e ainda fornecia filmes com renda dividida em cidades onde já havia cinema.

Certa feita, fomos ¨passar¨ filme num lugar chamado São Caetano. Na hora da exibição, nenhum pagante. Papai puxa conversa com morador do lugarejo e vem a saber de um lutador de um pequeno circo ter desafiado um ¨lutador¨ local e, naturalmente, todos estavam por lá. Uma meia hora depois lá vem papai acompanhado de umas oito ¨mulheres de vida fácil¨, lá de Custódia, que como nós foram faturar com a festa de rua do lugar. A mim foi entregue um disco de 78 rpm com a recomentação de que ficasse virando de um lado para outro, por ser o único disco. A segunda recomendação era coisa de pai pra filho: focar no som, nada de olhar a dança. Aqui aculá meu pai passava o chapeu e a matutada contribuia de forma satisfatória. No dia seguinte, o capim do quintal estava todo abaixadinho. Anos depois ainda havia ¨senhoras¨ me perguntando: ¨Ei menino, quando é que teu pai vai fazer outro forró daquele?¨ Minha mãe é que não gostou nada daquele acontecido!

No final da década de 70, o Cine Custódia fecha as portas encerrando a fase romântica do cinema no interior. Digo isto porque dezenas de outros cinemas também assim procederam. A televisão de ótima imagem e som, estava acessível a todos. Mesmo cinemas famosos não foram páreo às programações gratuitas, entre eles: Bandeirantes (Arcoverde), São José (Afogados da Ingazeira e Alvorada (Tabira). Em nome do meu pai, gostaria de aproveitar esta oportunidade para registrar o nome de pessoas que contribuíram com o cinema durante quase uma década sem receber uma prata sequer como pagamento. Foram valiosas as locuções feitas por José Melo e Fernando José, mesmo quando meu pai fazia exibição em outras localidade era a voz deles nas primeiras viagens, depois ficou sendo a de papai mesmo . Fica um agradecimento ao já falecido Humberto de João Anjo por ter sido o nosso primeiro operador de som e do projetor. Um carinho todo especial ao nosso Severino do Rádio pelos tantos reparos em nossos equipamentos. Alguém gritava: ¨Cadê o som¨. Meu pai dizia: ¨Chamem Severino!¨ Sem os amigos Guilherme Queiroz e Claudinete Simões o cinema não teria funcionado por muito tempo. O primeiro ¨esquecia¨ de cobrar o aluguel e ao segundo cabia o financiamento de filmes em épocas difíceis. Por fim, um agradecimento muito grande ao amigo da família Pedro Vitor. Este foi o fiel escudeiro da paz e da tranqüilidade em suas atribuições diárias pela cidade e a noite era o nosso anjo da guarda. Coitado, assistia até cinco vezes o mesmo filme. Sempre ao lado de Rosa, na época sua namorada. Quando lá não estava, aos primeiros ¨sapateados da turma¨ meu pai dizia: ¨Chama Pedrin¨. E Pedro ao entrar, dizia em alto e bom som: ¨Pessoal, eu estou aqui¨. A fita podia partir por vezes (e partia mesmo) e ninguém reclamava.

Com a chegada da televisão até a praça ficou vazia. A mulherada só desciam após a novela das oito. Houve até quem cobrasse entrada em sua residência daqueles desprovidos de um aparelho de receptor. Por estas e outras o prefeito Luizito disponibiliza um aparelho a céu aberto a quem quisesse assistir. Ao meu pai, coube perceber a chegada da hora do descanso de uma vida de trabalhos onde perambulou pelas mais diversas profissões. Isto porque aos nove anos de idade saiu de casa para trabalhar pelo simples prato comida. De lá pra cá, foi agricultor, carreiro, pedreiro, vendedor de ovos, vendedor de sapatos na feira, dono de padaria, militar, comerciante de móveis, entre outras. Prosperidade mesmo só no início dos anos sessenta quando se tornou um dos principais comerciantes da região do Pajeú. O rádio já existia mas foi o meu pai que o popularizou. O preço foi alto demais para uma pessoa acostumada a uma vida singela. Em um triste cair de tarde do ano de 1968 deixamos Tabira, enxotados pelas dívidas e pelo desencanto pelo lugar. Outra cidade teria que nos abraçar e por certo que nisto fomos felizes. Custódia representou o porto seguro em um momento de aflição, onde era difícil tomar um rumo certo ou dar sentido ao rumo. E por isso, só temos a dizer: Obrigado gente de Custódia!

Publicado originalmente no blog Famílias Lopes & Santos

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